sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Progresso

Claudio, ou Claudinho pra família, era muitas coisas mas não sabia. Levou um tempo pra ele perceber que todo mundo parecia saber quem ele era, exceto ele. Se deu conta disso pela primeira vez quando olhava um vídeo game dentro de uma loja qualquer. O atendente veio até ele e perguntou se ele iria comprar alguma coisa, ele repetiu as palavras que aprendeu observando os outros clientes.
- Estou apenas dando uma olhadinha.
O rapaz o olhou do alto da sua cabeça até seus pés e disse friamente:
- Você não pode ficar olhando nada, se não vai comprar vai embora.
Claudio como não tinha a intenção de comprar algo mesmo se virou e saiu da loja, mas pode ouvir o mesmo atendente se justificando sabe-se lá porque com as outras pessoas:
- Ladrãozinho.
Claudio descobriu aquele dia que era ladrão, devia ser afinal por qual motivo alguém diria isso. Provavelmente pegou algo de alguém algum dia e não devolveu, mas a justificativa não ameniza o fato ou esclarece a intenção.
Pegou e não devolveu é ladrão.
Ficou pensando nisso enquanto fazia o caminho de casa. Entrou no ônibus lotado se perguntando se poderiam reconhecer que ele era ladrão apenas  de o olharem. O ônibus lotado num dia quente sofria com o cheiro, como seu pai costumava dizer, desodorante vencido. Havia no ônibus 2 rapazes que por algum motivo usavam jaquetas com aquele calor. Eles eram altos e loiros, imaginou que deviam ser de outro lugar.
Será que sendo de outro lugar também reconheceriam um ladrão? Se perguntou incomodado de que apesar de lotado o ônibus, ninguém se sentava do seu lado, os mais próximos dele eram os loirões no banco
da frente com suas jaquetas e os rostos molhados de suor.
Uma menininha correu assim que entrou no ônibus e se sentou ao seu lado enquanto sua mãe pagava a passagem. Se acomodou ao lado dele e abriu um sorrisão de orelha a orelha. Ela deve estar querendo
ir é na janela, pensou. Antes mesmo de oferecer o lugar à senhora, ela puxou a filha pelo braço indo ficar em pé dois bancos pra trás.
Ser ladrão parece tão solitário, pensou, e tão fácil de se perceber. Desviou o olhar decepcionado com ele mesmo para a rua lá fora, realmente não lembrava de ter roubado ou pego algo de alguém. Não precisava
de nada, de ninguém. Seu pai lhe dava em excesso todo tipo de coisas. Tênis e roupa mal cabiam no guarda roupa, alguns até eram doados sem nunca serem usado. Crescia rápido por esses dias e a mãe gostava desse negocio de compras. Pensou nos pais, se eles reconheceriam que ele era um ladrão que nunca roubou. Sua atenção foi desviada para o senhor que ameaçava se sentar ao seu lado. Ele se sentou
mas imediatamente levantou e se dirigiu ao fundo do ônibus resmungando em um tom não tão baixo: preto fedido. Todos o olharam, desde o cobrador até o par de loiros no banco da frente.
Claudio descobriu que era preto e não negro como seu pai o ensinara, aliás, era preto e fedido. Timidamente levantou o braço cruzando-o por cima da cabeça e fingiu coçar as costas, apenas um pretexto pra sentir o cheiro de debaixo do braço. Não estava fedido. Reconhecia o mau cheiro no ônibus, mas tinha certeza que não era ele.
Bom, talvez não fosse ele. Será que ele se acostumou com o cheiro mal que não conseguia reconhecer que era dele? Não faz sentido.
Nada fazia sentido, ele tinha saído de casa com a intenção de ir ao curso de violão clássico que o pai insistia que fizesse. No período de 3 horas descobriu que era preto, fedido e ladrão.
O sentimento de desamparo e solidão crescia mas era hora de descer do ônibus. Ali era o ultimo ponto da linha e como dizia seu pai a companhia de transporte, com razão ou não, acha desnecessário ônibus por aquelas bandas. Provavelmente era o unico que usava o transporte por ali, por isso qualquer sinal de protesto seria inutil. Não mudariam a programação apenas por ele, argumentava o pai.
Seguia pelas ruas cabisbaixo e transpirando por causa do forte calor que fazia. Nem mesmo o traje que usava aliava os 35 graus com sensação de 40. Regata, bermuda, chinelo e o velho livro de partituras
embaixo do braço.
Tentou livrar a cabeça daqueles pensamentos, eram muitos e muito fortes. Virou a esquina chegando enfim a rua da sua casa, andou mais alguns metros  e se embrenhou por entre os carros tentando atravessar a rua, era hora de grande movimentação por ali.
Começou a andar e viu a sua frente um pai e seu filho num carro de luxo. Estava relativamente quieto pra tanto trafego por isso pode ouvir claramente os protesto do menino quando seu pai começou a subir os
vidros do carro, o pai explicou que logo abriria e que estava fazendo aquilo porque não queria dar dinheiro pra um marginalzinho, apontando para Claudio.
Ele olhou pra eles enquanto o vidro subia, olhou pro próprio peito e olhou para trás. Infelizmente Claudio descobriu que o marginal era ele.

Ele lembra disso até hoje, 15 anos depois, enquanto discursa no inicio de um pequeno evento que marca a aposentadoria do pai. Como se fosse ontem, ele pode se lembrar como chegou a grande e exagerada
casa que seu pai comprara. Foi até o banheiro, encheu a banheira, tomou banho e chorou.
Mas sobreviveu.
Hoje o novo diretor da maior empresa transportes do país, continuaria o trabalho do pai que a construiu com próprio suor e enriquecera com muita luta. Mas Claudio nunca esqueceu e nem esquecerá do dia em que descobriu que era preto, fedido, ladrão e marginal. E que por mais que tentasse mudar as coisas, ele teria que viver em uma sociedade preconceituosa, repleta de ignorância e imbecilidade com um governo
omisso. Mas Claudio é um rapaz inteligente que dá valor na opinião dos que realmente importam e respeita
a todos, mesmo os de mente pequena.
                               "Nos deram espelhos e vimos um mundo doente"